sábado, 17 de novembro de 2012

Uma Canção Para Bob Long


Filme independente norte-americano de 2004. Preciso dizer que, se há alguma humanidade no âmago da raça humana, do homem cuja natureza é essencial para sua compreensão para além das convenções urbanas, das estratégias de poder e controle social e da idéia de contemporaneidade de uma sociedade apolínea e compressora, como é notadamente aquela em que se passa a narrativa ... essa humanidade se derrama em cada momento desse filme.

Canção para Bob Long é uma história dos párias, daqueles que ficaram para trás, que bordejam o nosso mundo "perfeito"  - sublimado, recalcado, varrido, limpo e ascético -, a sociedade de Huxley - castrada e imunizada.

New Orleans é o pano de fundo perfeito para a rede de relações que se vai descobrindo no filme. Tempo e espaço - passado e presente se emulam em diferentes noções de tempo - costuram a cosmogonia de um mundo dilacerado e, no entanto, lúdico - para não dizer lírico ... o que explicaria esse aparente paradoxo ? Acho que a essência, essa profunda e latente força subterrânea e anímica, que Marcuse chamaria de instintos dominados por uma sociedade cada vez mais esquizofrência e insaciável.

Poderia também denominá-lo pretensiosamente como a forma mais próxima do super-homem, na sua face cósmica, na sua negação metafísica, de um ser ombreado a Deus - como se refere em diversos momentos do filme o personagem de Travolta - herói Nietzschiano-, e, no entanto humano, demasiado humano.

Este pequeno prólogo sobre a história, tenta apenas dar a dimensão que ela tem ... a de lançar uma luz sobre a estrutura primitiva, reducionista e autoflagelante de uma sociedade com laivos de um puritanismo anacrônico, que há muito deixou de ser um valor radical e não se contenta em ser uma representação simbólica do "Novo Mundo".

Travolta é o astro do filme, no sentido literal do termo, tanto por seu desempenho - recheado de pequenas performances musicais, como um menestrel apocalíptico ou trovador mundano daqueles arrabaldes de New Orleans -, quanto pela importância do personagem no enredo que beira a uma fábula absurda.

Os diálogos e cenas que compõem o texto do filme, primam pela universalidade de seus temas humanistas, sobretudo humanos. A linguagem ora sofisticada ora mundana, é digna das tradições modernas da história e da literatura norte-americana, a exemplo da eloquência  telúrica de Walt Whitman, e mesmo das citações de trechos da obra do escritor Robert Frost - talvez até um alterego do personagem Bob Long.

Enfim, Travolta se entrega totalmente ao personagem - uma resposta àqueles que o marcaram num passado já não tão recente como Toni Manero, o ítalo-americano estereotipado de Os Embalos de Sábado à Noite.

Também Scarlett Johansson, no tom correto do personagem - ela, na época, ainda uma atriz que estava surgindo, pouco afeita a papéis mais densos, que, como veremos depois, não foram tantos ...

Gabriel Macht, ator que não conhecia, está carregando o filme junto com Travolta, não que o filme seja ruim, mas porque eles têm um peso específico fundamental no drama ou pathos da história. Gostaria de ver outros filmes deste ator, pois ele se saiu muito bem na pele de um personagem muito complexo, se utilizando de uma abordagem existencialista, lastreada em uma linguagem corporal que vai se modificando durante o texto - há uma correlação íntima entre a verbalização e a expressão corporal, talvez devido a uma grande direção de atores, o que pelo desempenho geral observado parece ter sido o caso.

Os outros atores acompanham os protagonistas e a rigor conseguem retratar de forma leve o panorama da história - um canteiro de flores malditas, de ervas daninhas em meio ao suntuoso e artificial jardim da America ... como no início do filme, quando a personagem de Scarlett refere-se a uma flor selvagem que viceja à beira da estrada. Uma metáfora bem direta.

O filme mais importante deste século na filmografia norte-americana.


Por A.H.Garcia