terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Good

"Good", Bom. Sugere a perplexidade de um ser humano diante de situações que beiram o absurdo e o grotesco. O triunfo do senso comum sobre a lucidez. Entretanto, um matiz muito delicado permeia o argumento dessa história tipicamente alemã. Tipicamente alemã no entre-guerras, mais precisamente.

Leni Riefenstahl, Heidegger ... foram intelectuais cooptados pelo nazismo. Como nosso bom homem, foram pegos pelo ego.

Indivíduos em uma sociedade que se baseava, em seu apogeu, na premissa Darwiniana que só aqueles mais bem dotados sobrevivem. Mais bem dotados nesse caso confunde-se com aparelhados, em uma sociedade essencialmente totalitária cuja propaganda massiva e insidiosa penetrava as mentes das pessoas comuns, deletava os princípios daquelas mais bem informadas e suprimia a existência de todos aqueles que se opunham.

Era-lhe simplesmente impossível continuar no limbo em que se encontrava, rodeado por uma mãe senil e possessiva e uma mulher fria. A vida lhe sorriu justamente no momento em que o nazismo ascendia, com sua juventude e virilidade. Uma nova mulher; nova posição na universidade; reconhecimento acadêmico - a metáfora, é que isto se deveu a autoria de um livro sobre eutanásia, censurado ... sua utilidade funesta certamenta era uma antevisão do genocídio de uma nação.

Um Homem Bom é sobretudo muito mais do que apenas um bom filme.

Por Antonio Henrique Garcia.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A Duquesa

“A Duquesa”, tradução literal que encerra toda a pompa, e mais do que isso o poder imanente de uma classe sobre todas as demais.

Filme primoroso, que discute expressiva e ao mesmo tempo subliminarmente a retórica como a linguagem do poder, sob a qual todos se curvam em uma nação que até os nossos dias consagra seus costumes e idolatra suas personalidades como personagens épicos, que operam no inconsciente coletivo um subjetivismo fabuloso que subverte a realidade. Quadro que se mantém desde a unificação da Bretanha, cujo maior símbolo é uma lenda – “ O Rei Artur e a Távola Redonda”.

A Duquesa de Devonshire seria uma espécie de protótipo de Lady Di. Popular entre os súditos, entretanto com muito mais brilho que a última. O texto além de tudo é muito bom, com diálogos transbordantes de significado que radiografam a Inglaterra da época, em que um tema destaca-se: a liberalidade como conceito político e matiz iluminista, como efeito libertador das paixões em geral e da libido, em particular. Assim é a cena em que a duquesa é acariciada pela cortesã – uma iniciação às possibilidades do prazer além de sua conotação libertina, como algo transcendente – sensação desconhecida até então para ela.

Como todos os filmes de época ingleses, calcados em uma sociedade sempre dominada pelo auto-controle, e reprimida, afloram diversos questionamentos sobre as instituições sociais e mesmo da vida privada, que invariavelmente são muito bem explorados por esse gênero que tornou uma escola do cinema inglês.

Keyra Knightlei e Ralph Fiennes, dão o tom correto aos personagens, quase sempre contidos e polidos. Movidos cada um a seu modo, por desejos latentes que se superpõem às suas posições – determinadas pela genealogia e o sexo de cada um deles.

Filme denso, com grandes planos de cena que realçam a suntuosidade da época em oposição às limitações intrínsecas de uma sociedade que vive sob o tutela da representação, algo entre a realidade e a fábula.

Por Antonio Henrique Garcia

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

"Lembranças Vivas ..."

O título em português, como sempre prolixo e reduzido quanto à significação. Ou seja, de uma impropriedade incrível ... chama-se “ Lembranças Vivas ” – absorto, não me lembrei de ver o título em inglês nos créditos finais.

É um filme feito nos anos 90, com participação fundamental do clã Sheen, leia-se Emilio Estevez – ator e diretor – e Martin Sheen – ator -, contando ainda com uma atuação irritantemente magistral de Kathy Bates.

Um relato pungente não só sobre a guerra do vietnan, mas sobre as relações sociais e familiares, como relações de poder orquestradas subliminarmente na cabeça de cada um daqueles que detinham a manipulação da razão – em nome da ética da honra e glória da guerra, transfigura-se o sacrifício puritano, outrora castração da libido, em um adestramento movido pela repressão a qualquer emoção humana – como instrumento de massificação de uma ideologia totalitária. A juventude nazista talvez fosse um pouco mais perversa do que isso.

O texto e a direção do filme, mostram o quadro agonizante de uma família em um processo intestino de luta entre realidade e aparência, entre perfeição e mutilação, que ao fim irá se definir com o expurgo daquele que um dia foi herói de guerra, orgulho da família. O momento marcante em que tudo ganha força e sentido, é quando, diante da fragilidade do filho, o pai o expulsa da casa vociferando descontroladamente que era ele quem mandava... o óbvio se apresenta sem distorção – a ordem não admite contra-ordem.

O filme baseou-se em uma peça. Há um tom dramático que permeia os diálogos, utilizando-se com propriedade do recurso teatral na construção dos personagens e na tensão crescente que o diretor imprime em cada cena – valorizando a ação em detrimento dos planos, com uma fotografia que privilegiou suas expressões em closes que captavam a tensão latente que estava por eclodir. Mesmo as cenas externas, simbolizavam o horror paranóico do protagonista; enquanto sua coexistência dentro da casa com os pais – e a irmã – se parecia com o inferno dantesco.

A simbiose entre personagem e ator tão cara ao teatro, foi muito feliz. Pela coesão do elenco, é difícil se falar do desempenho de um ou de outro ator, embora Kathy Bates tenha levado ao extremo a loucura e a alienação da dona de casa frustrada e ressentida, dos anos 60.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

"Mama Mia"

Certamente a dimensão colossal, que, por exemplo, o próprio Henri Miller, através de recursos a topônimos, atribui às diversas passagens que constituem a história da civilização helênica, ou mesmo a dimensão humana de uma nação composta por homens e mulheres que são o registro vivo de valores e tradições, pulverizados por séculos de existência -, que se escondem sob maneiras pouco ortodoxas, uma geografia acidentada, manifestações rudimentares etc... sob o manto de um encanto visceral. Colosso e Visceralidade, como pretendia Henri Miller ... isto não se terá em “Mama Mia”.

Entretanto, não se está falando de literatura mas de cinema – embora esta diferenciação seja em vários casos conveniente, e é este o caso. As poucas manifestações típicas foram notoriamente estilizadas, mas de qualquer forma esta não era uma preocupação estética ou mesmo do texto. A atmosfera está mais para “Xanadu”, com Olivia Newton Jonh, contudo as locações originais e a opção pela superficialidade como limite no enfoque de todo aquele microcosmo – que já foi material para “Zorba, o Grego” -, funcionaram bem no estilo e no gênero escolhidos.

Gênero, musical. Timing frenético. Trilha toda calcada na sonoridade melíflua do ABBA e um tratamento contemporâneo na contextualização da narrativa. Até o lado kitcsh e fake e os estereótipos, compõem a atmosfera leve e a efemeridade das coisas, que dão uma agilidade pandemônica às seqüências, tendo como contraponto de fundo um cenário mítico. Entretanto, o resultado não é leviano: não há contradição temática entre filme e história.

O mote do filme, a começar pela trilha sonora - para os padrões atuais anacrônica -, continuando com a menção a temas como casamento, relacionamentos livres, panteísmo, religião e costumes ortodoxos, internet e isolamento, parecer ser o cogito sobre a imbricação entre o velho e o novo, e da relatividade das suas conceituações e rotulações.

De resto, as passagens são deliciosas para quem já ouviu e, também, os que ainda não tinham escutado o ABBA, sobretudo a forma como os temas foram tratados com situações emblemáticas, inteligentes e risíveis, por personagens centrais que poderiam ser caricatos não fosse sua radical sincronia com o mundo real – homens e mulheres de meia idade, e suas diversas opções existenciais.
Por Antonio Henrique Garcia

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A Outra

“ A Outra ”, como título, sugeriria várias interpretações decorrentes de suas diferentes conotações no tempo e no espaço, na condição de uma verdadeira entidade ou instituição para-familiar. Entretanto, parte a narrativa de um ponto de vista comum – o da concubina, amante etc. - evoluindo para uma trama urdida por uma mulher, cortesã e arrimo de uma família decadente cujo único patrimônio era seu título de nobreza, móvel conveniente nas relações de poder que prenunciavam o nascimento de um estado central, representado na figura do Rei e todo o aparato que o orbitava.

Contudo, a pretensão de se criar um enredo a partir de um fato histórico emblemático e de desdobramentos tão importantes para civilização ocidental, pegando carona no formato trágico, careceu de um tratamento mais profundo tanto na construção quanto na direção dos personagens. Ponto para a caracterização de um ambiente amoral, em uma época que ainda oscila entre costumes bárbaros e a secularidade eclesiástica.

Entretanto, a crueza que permeia toda ação da trama, demanda uma elaboração estrutural mais consistente. A personagem de Ana de Bolena, não encontra seu arquétipo, elemento fundamental na construção de um personagem trágico. Suas ações resultam deslocadas, sem referência essencial. A tentativa de fazê-la protagonista do contexto histórico no qual se insere a trama -, que vem a ser o argumento do filme -, resulta uma referência episódica desprovida de força anímica, o que paradoxalmente a aproxima da história oficial, da qual se tentou desprender. Mesmo a tentativa do incesto – não sei se fato ou não – soou estranhamente puritana... um belo exercício.

O final no entanto reserva o momento mais coerente do filme. A postura do monarca, é plenamente justificável no âmbito do contexto da narrativa e da história; o sacrifício como pena e forma de submissão é um modelo e costume introjetado na sociedade – o catártico espetáculo da execução -, preservado como instituição pulverizadora das inquietações sociais.

A perspectiva dedicada pelo filme à futura ascensão da princesa Elizabeth, indicando iminência de um novo momento histórico-civilizatório é também um feliz epílogo encontrado para o desfecho do filme.
Por Antonio Henrique Garcia

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Batman

Batman poderia se enquadrar, principalmente para aqueles desavisados, como um filme espetacular recheado de efeitos especiais, caracterizações bizarras e o altruísmo desinteressado do herói da estória ... História, no caso, se formos observar tudo o que a cerca e a contemporaneidade deste filme – sem dúvida, o de melhor argumento entre todos os da série. Aliado a isso vai resgatando o espírito dos quadrinhos de Frank Miller, o niilismo que é o avesso do sonho urbano – de uma comunidade imune ao caos que a cerca.

Muitas são as novas perspectivas apontadas pelo filme. Primeiro, sua plataforma é uma cidade real, formada por pessoas normais – Nova York, Chicago etc. Segundo, fica muito clara a relação que o roteiro estabelece com o presente, pela onisciência que permeia toda a narrativa do filme sobre os acontecimentos ainda vivos do 11 de setembro.

Porém, existe um aspecto outro aspecto, que é o eixo da narrativa – a discussão sobre a instituição “herói americano”. Nesse sentido, o filme é muito rico e apela para caráter esquizóide de tal definição – Batman procura uma personalidade, Gotham City procura uma Cara, Harvey Dent é um carreirista falastrão ou um cidadão que se dispõe a se sacrificar pela sociedade. A população mostrada como uma massa manipulável pela mídia – o Coringa -, tudo isso forma um painel hiper-realista do momento americano.

Mas o filme tem o mérito de resolver essas questões de uma forma positiva, ao deixar espaço para a reflexão com diálogos pontuais interessantíssimos entre seus protagonistas. E, ao contrário do que se diz, a participação do Coringa não ofusca a de Batman, e sim a complementa, e os mostra ambos como os elementos que carregam as idéias do filme. A direção tem o grande mérito de conduzir o andamento do filme como uma sinfonia.

E, no fim, você tem de volta o pathos do herói - que é também o inimigo público, tão presente no imaginário do americano, como a entidade que confronta o Estado sem confrontar o Status-quo -, e o resgate dos tipos soturnos que habitavam os quadrinhos originais de Frank Miller, herdados de uma tradição que vem desde Hawthorne e Edgard Allan Poe.

Por Antonio Henrique Garcia

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Ciclo Stanley Kubrick

“ O Lutador ”

Em “ O Lutador ”, Kubrick usou suas experiências como jornalista, para fazer um filme quase documental em que acompanha a trajetória de um lutador de boxe, nos momentos que antecedem o combate. Foi um filme sem muita repercussão, que basicamente retratou os bastidores e a preparação de um lutador antes de entrar na arena – assim como o fizeram séculos antes os gladiadores. Embora com uma outra roupagem e regras mais civilizadas, no combate moderno a morte também poderia ser um dos possíveis desfechos ...

Entretanto, o que chamaria a atenção da crítica neste filme, não seria esse aspecto de crônica marginal. Mas a forma como o diretor conseguiu evidenciar a plasticidade da luta, acompanhando de perto todos os seus movimentos, criando uma atmosfera fria e dramática do evento. Enquadrando a perspectiva sob a ótica da platéia, sutilmente contraposta à figura do homem – ao mesmo tempo Quixotesca e Titânica.

Enfim, “O Lutador” chamou a atenção pela sua fotografia privilegiada, provavelmente fruto da experiência que Kubrick adquirira sobre essa técnica, em sua breve e precoce passagem como jornalista e fotógrafo.

Este foi seu primeiro filme. Contudo não foi ainda um longa metragem.

Seu próximo filme foi um longa “Noir”, de produção independente e atores desconhecidos, sobre a relação entre um lutador de boxe fracassado e uma dançarina da noite. Nesta película, o lutador veio a se tornar também um assassino, já demonstrando seminalmente a queda por temas que revelassem a perversão como uma extensão da sociedade civilizada.


“ Spartacus ”

Seu primeiro filme da fase holywoodiana. Reuniu grandes atores como Lawrence Olivier, Kirk Douglas, Charles Laughton, Peter Ustinov etc., entretanto já aí ele não demonstrou se sentir muito à vontade com o Mainstream.

À abordagem dos grande épicos preferiu focar os personagens, praticamente dividindo-os entre aqueles cuja violência era a única linguagem que conheciam – os gladiadores -, e que não apresentavam grandes nuances psicológicas, e a elite romana, retratada como casta de valores decadentes, que vivia urdindo planos de tomada do poder sob a égide do “Senado Romano”, uma instituição falida como representação popular. Os Patrícios eram manipulados pelos Senadores, em seus projetos de poder.

Mais uma vez Kubrick recoloca o tema da perversão como fenômeno social, uma disfunção da civilização. Ao se rebelar, aqueles que eram objeto da crueldade patrocinada pela casta da nobiliarquia da república, catalisam a insatisfação latente de um império decadente. Entretanto, como um pathos constante na obra de Kubrick, aquilo que parece estar controlado por mecanismos remotos, de repente aflora de forma selvagem e bárbara.


“ 2001 – Uma Odisséia no Espaço ”

À época considerada uma obra que sintetizou o limiar de uma nova era – pela justaposição inicial a tudo o que havia sido feito até então, através da metáfora das descobertas datadas da pré-história do homem ... com um corte abrupto para esse mesmo homem, no Século XXI . Uma nova perspectiva do que viria a ser a Ficção Científica Moderna, realmente sua linguagem foi precursora de muitos outros filmes que o sucederam.

Outro aspecto importante, o Estético. A existência da gravidade como elemento real, que mantém uma ordem universal, foi magistralmente expressada espatifando o simulacro, através do qual o espaço infinito era reduzido a um mundo de quimeras, muito mais assimilado ao inferno subterrâneo de Dante.

Porém, a grande revolução apontada pelo filme foi o advento da Era da Informação, onde as relações humanas agora eram permeadas pela interferência da máquina. Não é à toa, que um computador dita o destino de toda a tripulação da nave. Este dispositivo neuro-cibernético é propositadamente assemelhado ao comportamento e às reações do homem, nominável, que veio a se tornar um organismo auto-destrutivo – mote observado em toda a obra de Kubrick, em que, mesmo não sendo de “esquerda”, são as contradições do próprio sistema que o levam a um processo de decadência. Em uma análise mais acurada dos temas recorrentes nos seus filmes, essa decadência nunca origina uma nova perspectiva mas desemboca em um movimento catártico, desprovido contudo das teses da terapeutica psicanalítica tradicional, entretanto muito crítico do viés psico-social da sociedade capitalista puritana.

Embora frio, é um marco do cinema: cheio de significações que mostram a transformação tecnológica, em andamento, da era da industrial para a era da informação, e suas conseqüências antropológicas – porque este sempre o foco de Kubrick, o homem.


“Laranja Mecânica”

Laranja Mecânica pode até parecer em seu texto, um filme que captava o prenúncio do movimento “Punk” em sua virulência urbana. Entretanto, foi muito além em suas pretensões temáticas, e, sobretudo, estéticas.

O protagonista longe de ser um proto-punk, não tem motivação alguma para agir como age. Nem crítico das instituições, iconoclasta, ou de origem proletária, antes de tudo ele parece viver num limbo social, o qual lhe permite ser apenas o que é – um produto de alguma ideologia alienígena totalitária.

A geografia e geometria das cenas se parecem com “2001...”, com ambientes claustros, que sugerem uma forma entrópica de enquadramento, com distorções de imagem e travellings ... portas que são a separação entre o devaneio e a realidade – um traço lúdico, talvez influência da fábula de Lewis Carrol – Alice, no País das Maravilhas.

Mais uma vez, a temática da perversão como um sub-produto social é o que sobressai na narrativa de Kubrick ... entretanto dessa vez ele incorpora como pano de fundo, sutilmente, a tessitura de uma superestrutura jurídico-política totalitária, seguindo uma perspectiva, sobretudo na época em que foi feito o filme, observada em outros filmes como “1984”, e mais tarde “Brazil, o Filme”... O que, do ponto do vista da economia política da reforma do Estado, na Inglaterra, era um assunto bastante em voga, que veio a culminar com a desestatização de muitas empresas inglesas na governo Margareth Tatcher, “ A Dama de Ferro ” ... mais uma vez a vida imita a arte, ou, pelo menos, há uma relação de imanência entre ambas.

Outros filmes : "Glória feita de sangue", "Lolita", "Dr. Fantástico" e "O Iluminado".
Por Antonio Henrique Garcia

sexta-feira, 25 de julho de 2008

HANCOCK

Assisti a um filme muito legal esta noite, em uma das salas do CINEMARK ...

Hancock é sem dúvida um herói diferente. A saída para sua genealogia foi bastante interessante, com uma narrativa que tem o grande mérito de ser incidental, lastreada em um argumento extremamente conciso e um pathos, que tem como principal elemento o conflito entre tempo e história. Isto decorre tanto de citações que beiram o épico, quanto da justificativa mitológica encontrada como um cascalho de diamante bruto.

Resulta assim, um filme de super-herói plenamente fundamentado esteticamente. A dicotomia entre homem e mito é dinâmica, contrapondo eternidade e mortalidade. Diria que é um Highlander mais real - série de filmes protagonizados por Cristopher Lambert, sobre o herói mitológico das terras altas da Escócia, que viaja no tempo.

A relação entre os dois protagonistas, mesmo monossilábica, é significativa. Representa a luta existencial entre possibilidade e impossibilidade, ou seja enquanto um não tem projeto e é um ser marginal, apartado, creio que baseado no conceito de autores e diretores clássicos americanos como Howard Hawks e Budd Boeticker, do herói solitário; o outro, abdica de seus poderes para se encaixar em uma vida padrão com família etc. Existe uma nuance radical nessa confrontação, enquanto um representa o caos, o outro pretende modificar o mundo pela difusão do amor e da compreensão.

Alguma relação com a política externa americana ?

Há ainda uma galeria de tipos que beiram a caricatura, que seria talvez a visão que os deuses – gregos, romanos, nórdicos etc. – teriam dos humanos.

O resto, são efeitos especiais, porém justificadamente utilizados na composição do filme, consolidando o seu discurso. A música, provavelmente segue a linha de Will Smith, com muitos rap’s e outros estilos neo-urbanos que denotam uma atmosfera conflagatória à narrativa.

Filme estrelado por Will Smith e Charlize Theron. Vale pelos ícones, e ambos o são. Vale a pena assistir, como entretenimento e mais ... Todo filme tem algo além, subliminar ou espetacular !

Por Antonio Henrique Garcia

quinta-feira, 17 de julho de 2008

DREAMGIRLS

A saga de garotas da periferia de Detroit em busca do sucesso como cantoras de Rythim&Blues. Entretanto, muito mais do que isso elas buscam se libertar daqueles grilhões que as mantêm como objeto sexual, com todas as sujeições que isto representa. Elas buscam a realização total como mulheres e cantoras, o que no universo em que se passa a narrativa desemboca em um complexo de preconceitos e sentimentos encarniçado das relações humanas, em um contexto, apesar da época do filme – anos 70 -, ainda muito machista e chauvinista.

O história do filme retrata também a forma selvagem como eram tratados os negócios, mesmo dentro da comunidade negra. Homens e Mulheres eram manipulados pelos magnatas das gravadoras - Motown etc -, servindo aos seus propósitos mercadológicos, os quais, em se tratando de uma população cuja música “Gospel” era algo quase sacro, se conflitavam com uma raiz cultural extremamente presente no cotidiano da população negra.

O filme emana muito sentimento, catarse, e a emancipação por parte das protagonistas de um sistema que reproduz a divisão de classes, valor social dos brancos, no âmbito da sociedade negra.

Entretanto, apesar do seu realismo, não deixa de ser um musical que mistura muito drama. O que o faz uma combinação explosiva, além disso composto por um elenco bastante afinado, principalmente porque em sua grande maioria por negros. Jamie Fox, Beyoncé, Eddie Murphy – com uma caracterização muito representativa do títere, de caráter fraco -, encabeçam um grande elenco.

Acho que aqui no Brasil, tivemos um filme com a mesma temática, que foi o “Meninas do ABC”, que trata dessas questões como sobrevivência, busca pelo sucesso, afirmação social, realização pessoal etc.

Enfim, um grande filme, contudo disponível atualmente apenas nas locadoras.

Por Antonio Henrique Garcia

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Cinema, Estrutura e Entretenimento

Marshall Mcluhan credita ao cinema, a grande forma de comunicação de massa desde a invenção da tipografia. Entretanto, acrescenta uma vantagem que a linguagem escrita não pode dar conta: a simultaneidade descritiva. Sendo assim, faz uma relação entre literatura e cinema; os romances teriam monopolizado a imaginação da idade moderna, inaugurada entre outros por Gutemberg.Esta perspectiva entretanto o faz associar tal expressão, como característica de sociedades letradas. O que explica que, os primeiros filmes de diretores como D.W. Griffith e Rene Clair tenham seguido a linha do Romance documental ou social, como por exemplo as novelas de Dickens. Linearidade que não seria possível no cinema russo de então, por se tratar esta de cultura de tradição oral. No entanto, não seria essa apenas a razão de tal diferenciação. Na Rússia, Eisenstein fazia experimentos com outros tipos de manifestação, como o Teatro, por exemplo, justapondo ao texto imagens. Era, então, a época do Dadaísmo e do Construtivismo - este basicamente relacionado com a arte como objeto de popularização. Mais tarde, o próprio Mcluhan emancipa o cinema das letras, proclamando sua modernidade nas obras de Chaplin, tanto estética - associando sua movimentação a um balé -, quanto no seu conteúdo crítico - Tempos Modernos, por exemplo. Como se vê, o cinema foi se nutrindo de mais e mais formas de arte. O som, entretanto, veio a ser um problema ... para todos. O filme passou então a ser objeto de um aparato industrial, que mudou seu formato e as reações a ele. Forjou-se então uma nova linguagem que incorporaria a articulação sonora. E mais tarde, a Televisão. Produto industrial, ainda não de todo digerido até os nossos dias ... o filme é um artefato cultural prenhe de significações subliminares, mesmo como forma de entretenimento ... ele, através dos seus ícones e signos, molda comportamentos e consciências.

Por Antonio Henrique Garcia

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os Reis da Rua

“Os Reis da Rua” bem que poderia ser um chavão aplicável à relação atual entre a Polícia e a População Brasileira, contudo é o título de um filme cujo argumento é a protagonização de personagens que têm um tom trágico que perpassa por toda a história da civilização moderna, encenada desde antiguidade clássica até nossos dias – a complexa imbricação entre o Bem e o Mal, Criador e Criatura.

Uma direção que focaliza a densidade dos personagens principais – seres profundamente voláteis -, no entanto não deixa de cair naqueles velhos estereótipos do gênero: como os homens são durões em situações limite – onde o protagonista está sempre em confronto com a morte ...

Esse o maior pecado do filme, apelo exagerado à violência explícita, o que o faz parecer apenas mais um filme de polícia e bandido. A Sétima Arte definitivamente passa por um período de pobreza cultural, de superficialidade filosófica, e por fim banalização das coisas – produto da ação do homem que sobrevém sobre ele mesmo, com seus artefatos milagrosos e letais ... Isto emprobece o conflito tão esperado do filme entre pai e filho, mentor e pupilo ... A necessidade de contextualização da trama, legítima em si, também caiu na banalização do discurso do dinheiro e poder – a corrupção como um mal da alma, algo que corrói dolorosamente valores éticos e morais, foi um mero um recurso retórico.

Os personagens, em decorrência estão um pouco fakes. Estranho, ver o Forrest Withaker com aquela caracterização, e previsível o formato do Keanu Reeves, como um caubói moderno. Entretanto, ambos os atores têm carisma e carregam o filme.

O desfecho foi completamente previsível – vamos dizer lacônico – para o que se pretendeu mostrar, o confronto entre gigantes, diria mesmo entre mitos da História e do Teatro. Mais uma vez Los Angeles e suas colinas que descortinam o olimpo foram o pano de fundo e a grande atração, talvez o cenário tenha sido o maior apelo deste filme.

Por Antonio Henrique Garcia

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Billy "The Kid" Wilder

O que acontece quando vc lê a biografia de alguém que ajudou a construir essa indústria cinematrográfica que existe hoje, cujos atores, apesar de transnacionalizarem-se, não mudaram nem um pouco. É fácil criticar desconhecendo todos os matizes de um processo, que é a mais nova das grandes artes, o cinema ou a película, ainda encantador, inebriante, revelador ...

Estou falando de um realizador de filmes, roteirista e diretor, cujas obras resistem ao tempo. Billy Wilder. Segunda geração de cineastas europeus a vir para os Estados Unidos, compôs juntamente com outros de seus contemporâneos a grande era do cinema americano do entre guerras, com filmes cuja temática digredia sutilmente do sistema utilitarista que imperava na época, rico em contradições maravilhosamente exploradas.

Inicialmente, com comédias cujo argumento era sempre o do desencontro e do conflito jocoso, entretanto como ele mesmo revela quando roteirista - a tônica na época, era sempre estar à frente do público com situações insinuantes e inteligentes e diálogos que extrapolassem o senso comum. Nesse tempo a Paramount, tinha uma equipe de 179 roteiristas, entre eles F. Scott Fitzgerald. Todos comandados por Ernst Lubitsch, então o grande Diretor do Estúdio.

Não tardaram a surgir filmes mais rebuscados e conflituosos, com uma grande direção de arte herdada do Cinema Expressionsta Alemão. Cidaddão Kane, de Orson Welles, por exemplo. Billy Wilder, realizou outros tantos como Sabrina, Irma la Douce, Crépusculo dos Deuses, Fedora, Farrapo Humano, Testemunha de Acusação com uma atmosfera sofisticada e humana, que revelavem já traços de uma densidade psicológica proveniente de sua origem européia.

A sua dimensão como motor dessa indústria nos permite não nos atermos a aspectos datados, até porque a ideologia não era o seu forte ... e hoje acho que estava certo। A arte transcende esses limites materiais. O quê ... que permitiu-lhe enveredar por comédias de situação deliciosas recheadas de ícones, e algumas delas tendo como cereja a sensualidade indefectível de Marilyn Monroe ... talvez o avesso do clichê loira burra. Entretanto, não podemos deixar de registrar que "Quanto mais Quente Melhor, o Pecado Mora ao Lado, Sabrina etc.",pertencem a uma outra época do pós-guerra, ávida não pelo sublime mas por sublimar seus impulsos, é o "American Way of Life" ... acho que há nesses filmes algo marcusiano da sexualidade irreprimível, da rendição dos demais objetos ao principal - a libido.

Esse viés subliminar como conceito inclusivo de indústria cultural provavelmente tenha subconscientemente drenado movimentos sociais como os Beats, Contra-cultura, Paz e Amor, Hippies; talvez os tenha também contaminado com o niilismo da geração do entre guerras e também do pós-guerra - que Kubrich representou de forma inequívoca em "Dr. Strangelove", ou através dos impulsos perversos de uma sociedade doente em "Laranja Mecânica". O estranho é que é difícil estabelecer uma relação temática ou estética entre eles, mas sem dúvida há um elemento linguístico que tem em comum o texto transgressor. Subliminar em um, expresso em outro.

Segundo o próprio Billy Wilder, logo que chegou aos Estados Unidos ainda embevecido com aquele mundo novo, Douglas Fairbanks Jr. lhe disse à propósito ...
" isso é só por cima ...". Wilder aparentemente adotou a linha instucional, ficando sempre à sombra do Mainstream Hollywoodiano.

sábado, 19 de abril de 2008

“ O JOGO DO PODER ”



Qual o papel , ou melhor, a importância da ética no mundo atual ... as contra-facções para-religiosas que se mobilizam politicamente dentro de um sistema absolutamente plutocrático, a favor de causas pretensamente humanitárias. Tudo isso ainda no final guerra fria. Uma comédia onde os atores principais são as duas super-potências – com um roteiro imprevisível escrito por um parlamentar americano negligente e a União Soviética e seu sistema de valores desumanos como escada.

O interessante porém é que o maior combustível de tudo isso é uma boa garrafa de whisky; seja um tradicional Bourbon ou Scotch – ele destila através de personalidades as mais excêntricas vulnerabilidade diante da possibilidade onírica do poder ilimitado. No caso do parlamentar Jones: o de transformar uma verba de US$ 5 milhões para guerra do Afeganistão em US$ 1 bilhão, até a saída nada honrosa da ainda União Soviética.

Socialites desocupadas, parlamentares fanfarrões, ditadores e tiranetes, mostram um lado mais uma vez escatológico – porque sempre uso esse termo em filmes americanos -, porém o tom dessa vez, para o bem ou para o mal, é mais irônico, contudo nem um pouco cínico. Tem o mérito de colocar na ribalta, o lado histriônico que a maioria do mundo já percebeu nesse imbrólio que é a política externa americana; o teatro das suas pretensões globais.

Enfim, o filme é uma fábula real de toda política internacional desde o pós-guerra até os anos 80। Esta é a sua verve, propositalmente maniqueísta quanto àquela velha pergunta se os fins justificam os meios... o que é fundamental para se compreender o epicentro das articulações dos acontecimentos contemporâneos, tendo que como trilha sonora os discursos caducos e anacrônicos de um personagem que tem todos os atributos fanfarrônicos do nosso protagonista.

O final reserva entretanto uma reflexão interessante, quando em palavras textuais do próprio parlamentar, ele diz que tinham feito tudo certo, pena que erraram no finalzinho. Futuro ou Retrospectiva ? Essa resposta é fundamental para se entender o modelo de comunicação global e suas diversas facetas dialógicas. Internet, ONG’s e a grande rede de interesses que os permeiam.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

“ O ÚLTIMO REI DA ESCÓCIA ”

Para começar esse texto vou usar uma citação do jornalista polonês, Ryszard Kapuscinski, conhecedor dos problemas africanos, tanto quanto um europeu poderia ser, “ Já pensei em escrever um livro sobre Amin, pois ele é o mais vivo exemplo entre criminalidade e cultura. ”.
O filme entretanto se reporta quase que inteiramente à sua personalidade aparentemente esquizofrênica e suas manias de grandeza. Tudo gira em torno desses impulsos fruto do pânico de perder o poder – derivado de uma grande fraqueza, de associar tal poder à sua própria vida , é este o pathos que a película opta por focar -, o medo do caos que ele próprio gera se volte contra si. Mesmo não sendo o seu objetivo ser documental, o filme peca por se render à uma imagem, um ícone de um problema maior que é turbulência de todo um continente.
O recurso ao alterego europeu contribui de forma de decisiva para a dramaticidade da narrativa – ele catalisa o microcosmo da cúpula do poder, contudo o cenário insaciável, a conflagração étnica latente de uma nação cada vez mais dividida, mereceria uma maior importância na narrativa da película.
O europeu que, inicialmente tenta decupar suas intromissões catastróficas no processo de independência e formação dos países africanos, é tomado pela febre do poder – algo com o qual ele não sabe lhe dar, porque nem sabe que existe em seu conforto blindado -, plasma o Amim que vagava pelas tropas inglesas tratado de forma negligente e indulgente. Neste sentido, Amim foi algoz e vítima.
O filme entretanto não transcende este conflito, mas é muito bom. Os delírios de poder do ditador, suas atrocidades, isso é apenas como diz o próprio Amin, o desejo de ser um deles – assimilado a eles de forma nobiliárquica -, ao que parece ele foi inteligente o bastante para compreender aquela cultura estrangeira e predadora. Este o seu único legado.
“ O Último Rei da Escócia ” é a história de um homem e seu alterego, não por acaso um jovem escocês a ser suprimido em ritual tribal. Um final banal e terrificante. Assim como tem sido tratada a própria África – o pano de fundo das mais profundas e violentas catarses coletivas do último século. Tudo ali se resume à sua identidade, vítima ou predador.

MANDANDO BALA

“ Mandando Bala ” – como descreve Habermas sobre a transição histórica do pensamento, com a Crítica da Razão Pura de Kant como transcendência do método científico tradicional, depois Hegel elaborando ainda de forma seminal a importância da subjetividade em uma Alemanha marcada pela rigidez de idéias para-religiosas, entre o luteranismo fundamentalista e a influência do iluminismo ... desconstrói de forma irônica as verdades que ainda são veiculadas por artefatos de manipulação maciça do poder que transforma processos históricos em blockbusters.

Neste sentido, “ Mandando Bala ” é uma obra de considerável importância, que se utiliza permanentemente conflitos significantes e ambivalentes, remetendo de forma direta aos temas que tentam abafar com discursos vazios.

Seus movimentos revelam uma ação calcada em uma trilha musical pesada, como um videogame, usando a mesma linguagem midiática veiculada pela indústria armamentista – um anacrônico culto fálico de fundo estruturalista -, de que a arma é uma extensão do homem. Mas, mais do que isso, como diz Baudrillard em seu livro “ Estratégias Fatais ”, levou-se ao limite do êxtase tal poder, a ponto de atribuir-lhe uma característica virtual de um super-poder, ligado à sua capacidade destrutiva, vista atavicamente como a única forma purificadora.

Seus personagens possuem todos um tom bizarro, talvez uma antítese dos estereótipos hollywoodianos; talvez elementos que carregam significados subliminares à narrativa. Mônica Belluci como a prostituta que preserva algum sentimento humano; Clive Owen, um personagem cujos movimentos são arquitetados como planos de videogames; finalmente, Paul Giamatti, magistral, com o seu pseudo-psicopata, o impostor ou símbolo a ser combatido pelo herói.

O absurdo dessa situação é denunciado claramente pelo argumento filme, por si só monstruoso e absurdo. Seu herói (?) padece do que poderíamos situar como o “ pathos ” do filme: participação involuntária na morte da mulher e da filha, vendendo armas para o atirador ... As inverossimilhanças são paradoxalmente o que constitui o elemento verdadeiro do filme, pois mostram o lado grotesco de tal instinto, funcionam como chaves – uma regressão à introjeção dos heróis, de indivíduos que têm que redimir toda uma nação e salvar o mundo.

Acreditar nas simbologias jocosas do filme é dar crédito a seu poder massificador. É atribuir ao dilema, a solução mais fácil, e sobretudo isolar a contemporaneidade da trama em seu significado mais óbvio, da obscenidade, do simulacro, das imagens escatológicas sem sentido. A percepção do seu texto - prolífico e radical - como um vírus gerado pela própria hiper-significação da obra, magnificamente explorada pelo autor, deságua em uma epifania cujas imagens mexem com nossos sentidos.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Um gângster marginal

"O gangster" se não fosse um filme, bem poderia ser uma simples crônica policial ou um épico da formação urbana americana – bem verdade, sobre um período relativamente curto, porém bastante intenso. E intensidade é o que não lhe falta, desde seu início fatalista – a morte de um homem singular em uma época conturbada, é um prenúncio de que os intestinos do sistema vão pular para fora.

O paradoxo de uma democracia em que até o crime é organizado sobre bases racistas, invoca que ele é imanente a essa sociedade, uma parte cruel; o aparelho policial também reproduz essa realidade. E esse é outro traço marcante do filme, seu realismo – talvez explicável por ser baseado em uma história real ... entretanto não lhe tira o mérito esse aspecto, pois sua concepção traz à luz a complexidade de uma sociedade que se auto-mutila em suas diferenças aparentes. Algo subjacente a tudo, algo que traduz o universo urbano e suburbano de uma sociedade barbarizada, como se houvesse uma divisão social da frustração humana entre a classe dominante puritana e os que dela não descendem, moral ou geneticamente – obviamente desfavorável à última ...

Italianos, irlandeses e negros co-habitam nesse mundo. Esse é o mote da narrativa, texto onde não são as palavras que marcam; ao contrário, existe um código de sobrevivência que naturalmente leva ao conflito e invariavelmente à morte – seja ela gradual ou abrupta, fruto de uma luta que ultrapassa qualquer categoria, grupo ou classe social, situando-se na esfera do indivíduo – um indivíduo Darwiniano.

E é justamente um indivíduo, no seu sentido literal, forjado entre os dejetos e o lixo da sociedade – reservado aos negros, seja nos campos e arrabaldes sulistas, seja nos guetos das metrópoles -, que protagoniza essa narrativa muito bem captada e contextualizada de uma época. Um homem que consegue transitar entre o velho e novo, um iconoclasta empedernido que viceja naquele submundo, cercado não por cercas de verdade mas por relações internas e externas a ele, enfim por uma ordem inexorável.

Era o cenário perfeito para sua aparição, contra-cultura, hippies e o escapismo provocado pela decepção com os rumos da guerra com o Vietnã. Entretanto, seu modus operandi segue a mesma racionalidade mercadológica de qualquer empreendedor capitalista, vendendo o que a sociedade demandava – heroína em pacotinhos azuis a preços extremamente atraentes, cuja matéria prima era conseguida de um modo um tanto subversivo – através do aparelho de guerra . Afinal, um negro transpõe as barreiras do gueto e ousa romper com aquela conveniente geografia de uma ordem secularizada.

A cena em que sua mãe diz que ela o abandonará, sua linda esposa o abandonará e seus irmãos farão o mesmo, é o corte que prenuncia o desfecho do filme. Algo entre o drama shakespiriano e universo escatológico que persegue a cultura americana.

Afinal, uma personalidade tão predadora quanto o “ Cidadão Kane ” de Orson Welles.